Você é o que você come? Saiba como esta visão pode estar prejudicando seu relacionamento com a comid
- Nathália Petry
- 30 de mar. de 2017
- 7 min de leitura
Comer olho de tigre para melhorar a visão, pata de urso para melhorar sua força, pênis de tigre para aumentar sua virilidade, ossos de vacas velhas para aumentar a longevidade... parece loucura, certo?
Bom, você já ouviu aquela famosa frase “você é o que você come?”, certo? É algo que vemos muito nas redes sociais e no nosso discurso diário, e que, apesar de talvez não pararmos para refletir sobre o que realmente é ser o que você come, tem um grande impacto nas nossas escolhas e no nosso comportamento alimentar.
Segundo o autor Alan Levinovitz, “você é o que você come” é um pensamento que deriva de uma superstição antiga e praticamente universal de que poderíamos absorver as qualidades físicas – e morais – de um alimento, como as práticas citadas aqui no primeiro parágrafo, executadas por povos antigos.
E quando pensamos nessas práticas podemos achar que nós não estamos mais sob influência de pensamentos desse tipo. Mas reflita:
Quantas vezes você já ingeriu algum alimento gorduroso e acreditou que aquela gordura estava toda se depositando no seu abdome?
Quantas vezes, você já se pegou pensando que se você comer gordura, você ficará gordo? E que se você comer carne magra, ficará magro?
Quantas vezes, você já se questionou se comer mais carne magra terá mais massa magra?
Quantas vezes já passou à sua mente que uma pessoa magra come coisas magras, e que uma pessoa gorda come coisas gordas?
Quantas vezes, você já nomeou algum alimento como “engordativo” pelo seu teor de gordura?
Quando falamos em comer olho de tigre para melhorar a visão, até nos parece absurdo. Mas quando pensamos em comer menos gordura para sermos menos gordos, parece fazer sentido, certo?
Vejamos a figura abaixo. Ela faz sentido para você?

Se ela faz sentido para você, talvez você compreenda que o tal pensamento mágico “você é o que você come” está inserido na sua vida. Afinal, se eu só comer coisas “gordas”, eu irei engordar. Mas seu comer coisas “fit”, serei "fitness".
Agora, vamos pensar analiticamente: será mesmo que uma pessoa magra não come alimentos gordurosos? E que uma pessoa gorda não come também frutas, saladas e carnes magras? Olhe ao seu redor, para seus colegas e amigos, e responda esta questão.
Pois é! Você esteve sob a influência do “pensamento mágico” do “você é o que você come”. A verdade é que podemos e fomos feitos para comer de tudo, afinal, somos uma das pouquíssimas espécies onívoras.
Além disso, os nutrientes não irão se depositar desta forma no seu corpo. Quando comemos gordura, proteínas e carboidratos, estes nutrientes irão se quebrar em pedaços menores já dentro do nosso trato gastrointestinal, para conseguirem ser absorvidos, e já na nossa corrente sanguínea serão encaminhados para os locais de maior demanda. Quer dizer, a gordura que você está ingerindo não vai necessariamente se depositar imediatamente nos seus reservatórios! Você sabia que precisamos de gordura saturada para revestir os nossos neurônios? Assim como as membranas de todas as nossas células? Você sabia que a glicose (açúcar) é o combustível preferencial e exclusivo do nosso cérebro e é a fonte de energia primária do seu organismo?
Talvez agora parando para pensar de forma analítica, você concorde que o açúcar e a gordura têm funções importantes no seu corpo, e não são a causa da obesidade como costumamos pensar. Pensando com análise e crítica, conseguimos perceber como o “você é o que você come” não faz sentido. Uma pessoa magra não comerá apenas coisas "magras", afinal ela também precisa de gordura para seu organismo funcionar. No outro sentido, o mesmo ocorre: uma pessoa gorda pode se alimentar muito bem, de tudo.
Porém, sem trazer essa análise crítica, o “você é o que você come” vive em nossa mente e influencia nossa perspectiva e nossas escolhas.
Um estudo muito interessante, realizado pelo psicólogo Michael Oakes, ilustra bem isto. Ele descobriu que um único Snickers miniatura (bombom feito de chocolate e amendoim), de cerca de 47 calorias, foi percebido como um agente que promovia mais aumento de peso do que um bufê de 569 calorias de queijo cottage, cenouras e peras. Ele também observou que a percepção errônea foi mediada basicamente pelo teor de gordura (MICHAELS, 2005). Afinal, quando mais gordura há, mais gordura se formará no meu corpo, certo?
Não. Esse é o pensamento mágico “você é o que você come” agindo mais uma vez. Percebe agora como ele é bastante forte?

E quais são as consequências desse tipo de pensamento? Como isso está interferindo no seu relacionamento com a comida?
1) Terrorismo nutricional e um relacionamento conturbado com a comida Tendo em mente este tipo de pensamento, passamos a ter medo, vergonha ou culpa ao comer uma série de alimentos. Por exemplo, passamos a ter medo de comer alimentos mais “gordurosos” porque eles poderão nos engordar, ou “junk food” porque, como o nome diz, nos intoxicará. Passamos a perseguir uma alimentação limpa (“clean eating”), magra e fit, pois ao os comermos nos sentimos limpos, magros e fit. Não é mesmo?
O grande problema é que nosso cérebro não funciona dessa forma, e parece que quanto mais julgamos e proibimos um alimento que gostamos, mais temos obsessão por ele. Isso é confirmado por vários estudos que avaliam a supressão de pensamento, como o de Soetens (et al, 2008), que observou que quanto mais os indivíduos “dietistas” suprimiam seus pensamentos sobre chocolate, maiores eram seus desejos por ele, e também o consumo. Você já sentiu isso também?
Dessa forma, podemos desenvolver obsessões por certos alimentos, e assim passar a construir um relacionamento conturbado com a comida, estar mais susceptíveis ao desenvolvimento de compulsão alimentar, aumentar o risco de ganho de peso e se desconectar dos nossos sinais básicos de fome, saciedade e também apetite do nosso organismo.
2) Transtorno alimentar O pensamento “você é o que você come” tem incentivado um transtorno alimentar ainda pouco conhecido, mas bastante crescente: a ortorexia nervosa. Na obsessão de se sentir puro e limpo, o indivíduo se torna obsessivo por uma alimentação que julga saudável.
O ortoréxico começa a restringir cada vez mais sua alimentação, evitando veemente aqueles alimentos que não julga saudáveis, podendo deixar de ter uma vida social e até ter comportamentos disfuncionais, como passar a consumir apenas alimentos preparados por si. Esse transtorno alimentar pode parecer inofensivo, disfarçado de pessoa saudável, mas têm implicações na saúde muito importantes, como morbidade e mortalidade significantes.
3) Viés científico “’Você é o que você come’ é superstição, e não ciência, não importa o quanto pareça plausível”, comenta Levinovitz.
Acreditar que não comer gordura te tornará magro, ou que comer apenas vegetais orgânicos te fará puro, é má ciência da mesma forma que acreditar que comer língua de pássaro possa fazer uma criança falar.
E esse é um problema. O “você é o que você come” está tão inserido em nossas mentes que ele vai além das nossas mesas e cardápios e invade a produção científica.
A verdade é que, como coloca Levinovitz, esse pensamento mágico acaba nos parecendo mais com ciência do que com fé religiosa, e muitos estudos e orientações dietéticas são enviesadas por ele. A literatura dentro da ciência da Nutrição é bastante ampla, e facilita com que escolhamos dados que confirmem nosso preconceito.
Se eu suponho que a gordura pode tornar-nos gordos, por que não conduzir estudos que desvendem – e confirmem – esta confirmação? Segundo Levinovitz, este cenário pode ser a representação do vivido pelo doutor Ancel Keys e sua determinação em comprovar a relação entre gordura saturada, doenças cardiovasculares e obesidade. Seu estudo dos 7 países, que derivou as orientações dietéticas de reduzir o consumo de gordura saturada e que modificou o consumo nos EUA (levando ao crescimento de produtos sem gordura e a um aumento do consumo de carboidrato), foi desmascarado recentemente por sua má metodologia.
Percebem? Um grande estudo, altamente influenciado pelo “pensamento mágico”, e também adulterado em função disso, levou a orientações dietéticas e consequentemente a uma alteração do consumo alimentar da população americana. Isso é algo muito significativo, e perceber que nossas orientações dietéticas e produções científicas possam ter um mito como base é algo muito preocupante.
4) Culpabilização do indivíduo e a questão da força de vontade Além disso, o “você é o que você come” também está hipnotizando profissionais de saúde.
Em um estudo realizado nos Estados Unidos com 620 clínicos gerais (Foster et al, 2003), um terço destes sentia que seus pacientes obesos tinham “pouca força de vontade”. Ou seja, eles culpam estes indivíduos por estarem obesos, e, de certa forma, por comerem alimentos que os tornariam obesos.
Como Levinovitz coloca, estes médicos focaram no “você” do “você é o que você come”. Quer dizer, se você está gordo, é porque come alimentos que te deixam gordo. Não é mesmo?
Não! Olha o pensamento mágico agindo novamente – e dentro da comunidade de profissionais de saúde!
A verdade é que a obesidade é uma condição multifatorial, e uma coisa é certa: o indivíduo não chegou à obesidade por comer hambúrguer gorduroso. Existem muitos fatores a serem considerados, como, por exemplo, você sabia que cerca de 30% a 40% dos obesos que procuram tratamento para emagrecer poderiam ser diagnosticados com Transtorno de Compulsão Alimentar (TCA), um transtorno alimentar em que a tentativa de controle e restrição alimentar piora ainda mais o quadro compulsivo? (DUSCHENE et al, 2007; Binge Eating Disorders Association)*
Em conclusão, considerar que engordamos simplesmente porque comemos coisas “engordativas” (pensamento você é o que você come), parece tão sem sentido e ineficiente quanto comer pata de urso para aumentarmos nossa força.

Nutricionista comportamental em São José dos Campos (SP)
* Um episódio de compulsão alimentar (“binge eating”) é caracterizado por ambos os seguintes critérios: 1 – ingestão, em um período limitado de tempo (por exemplo, dentro de um período de duas horas), de uma quantidade de alimento definitivamente maior do que a maioria das pessoas consumiria em um período similar, sob circunstâncias similares; 2 – um sentimento de falta de controle sobre o episódio (por exemplo, um sentimento de não conseguir parar ou controlar o quê ou quanto se está comendo). (DSM V, 2013).
Referências bibliográficas:
DUCHESNE, M. et al. Evidências Sobre a Terapia Cognitivo-Comportamental no
Tratamento de obesos com Transtorno da Compulsão Alimentar Periódica. Revista Brasileira de Psiquiatria do Rio Grande do Sul, Rio Grande do Sul, 29(1), 2007.
FOSTER GD, et al. Primary Care Physicians’ Attitudes about Obesity and its Treatment. Obesity Research, 11(10), 2003.
LEVINOVITZ, A. A Mentira do Glúten e outros mitos sobre o que você come. Porto Alegre: CDG, 2015
MICHAEL EO, Stereotypical thinking about foods and perceived capacity to promote weight gain. Appetite 44(3), 2005.
SOETENS B, et al. Suppression in Obese and Non-Obese Restrained Eaters: Piece of Cake or Forbidden Fruit? Eur. Eat. Disorders Rev., 16, 2008.
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