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Ensaio sobre a autoaceitação

  • IACI Instituto
  • 29 de jun. de 2017
  • 9 min de leitura

Pensando em trazer conteúdos diferenciados e de qualidade para nosso Portal, hoje entrevistamos a nutricionista Paola Altheia, idealizadora e criadora do blog e da página do Facebook Não Sou Exposição. O tema que escolhemos para essa entrevista é algo importante no processo de fazermos as pazes conosco e com a comida: a aceitação.

Confira abaixo as respostas da Paola, que renderam um verdadeiro ensaio sobre este tema tão importante, mas ao mesmo tempo tão polêmico.

1) A autoaceitação é o tópico da maioria das dicas cujo propósito seja nos ensinar a cuidar da nossa autoestima. Mas o que é a autoaceitação? E como ela se relaciona com a alimentação?

É muito importante o entendimento de que aceitação não significa conformismo ou negligência. Muitas pessoas acreditam que as mudanças que querem atingir só serão possíveis “na marra”. Através da pressão, da exigência, da autocrítica e em alguns casos, da repulsa. Não é incomum a crença de que se nos indignarmos “o suficiente” com algum aspecto que nos incomoda, poderemos transformá-lo. Por isso algumas pessoas creem que aceitar as coisas como são é algo simplesmente inadmissível. O engano mora na crença de que conseguiremos atingir os nossos objetivos por meio da aversão. Essa noção não poderia ser mais enganosa. Aceitar não significa se render, deixar todo como está, não se importar com mais nada. Aceitar é ter lucidez. É realmente trazer para a realidade todos os aspectos de uma determinada situação, reconhecendo os pontos fortes e as vulnerabilidades, sem fazer juízo de valor. É deixar de insistir numa dinâmica de autopunição e encarar os fatos com objetividade. As suas expectativas são realistas? O corpo ou o padrão alimentar que você deseja é realmente algo atingível? Você QUER mudar? Ou apenas acredita que precisa? A demanda parte de você, ou é externa? Quais são os fatores que você realmente tem plenas condições de modificar? Qual é a parte de você que nunca irá mudar, por mais que você proteste ou se frustre?

Aceitação não significa simplesmente se abandonar, muito menos desenvolver uma autoestima frágil e histriônica dentro da qual TUDO é maravilhoso. As coisas não são assim. Os dois extremos indicam desarmonia. Aceitação é entender quem você é de peito aberto, sem ressalvas. É se tratar com amorosidade, carinho, respeito, acolhimento, compaixão. É reconhecer que somos imperfeitos e podemos fazer o melhor com os dons e oportunidades que temos.

A aceitação se relaciona intimamente com a alimentação e eu falo constantemente sobre a ligação entre os dois temas. Porque ninguém consegue construir um padrão alimentar equilibrado e saudável de uma maneira que não seja consciente e afetuosa. Insatisfação corporal, crenças alimentares rígidas e autocobrança são as ferramentas que as pessoas mais usam para tentar melhorar a alimentação, sempre sem resultados sustentáveis. Quem ama cuida: esta é uma verdade universal.

2) Não é raro escutarmos que devemos aceitar nosso corpo e nossa aparência. Mas esse é um caminho as vezes muito difícil. O que fazer para encontrar a autoaceitação?

Inicialmente, me sinto inclinada a discordar da pergunta. O discurso hegemônico e dominante partido da mídia, do mercado, das autoridades oficiais de saúde e até mesmo do governo nos sugere constantemente que o nosso corpo sempre pode(e deve) ser melhorado, transformado, modificado ou educado de alguma maneira. Digo por experiência que a noção que predomina no imaginário da maioria da população é a que ter um corpo significa um constante trabalho de manutenção. Lutamos contra o corpo o tempo todo. Somos diariamente e incisivamente encorajados a desrespeitar as nossas necessidades orgânicas mais fundamentais. Vivemos todos no mais absoluto limite físico, psicológico e emocional. Discursos de aceitação, no meu entendimento, são muito raros.

Esclarecido isto, acredito que o caminho é realmente desconstruir crenças irrealistas e errôneas a respeito de corpo, controle de peso, alimentação e saúde. As pessoas sofrem muito com insatisfações corporais por muitas razões, mas uma das principais é a ideia de que nós somos inteiramente responsáveis pelo corpo e a aparência que temos. Estamos profundamente imersos na noção de que temos o poder de escolha e modificação de processos orgânicos.

Pessoas acreditam que é possível escolher comer pouquíssimo, ou mesmo não comer. Pessoas acreditam que é possível escolher ter um determinado peso na balança. Pessoas acreditam que é possível escolher mudar características físicas marcantes, como gordura na barriga ou coxas grossas. Pessoas acreditam que é possível reverter o envelhecimento.

Grosso modo, pessoas acreditam que o corpo está totalmente sujeito ao nosso domínio e que se você não tem o corpo que deseja, é porque não se esforçou o suficiente.

Ser responsabilizado por não ter determinadas características físicas é um processo que gera frustração, baixa autoestima e constante sensação de fracasso. Precisamos compreender como as coisas verdadeiramente funcionam e abandonar as (tão antigas) ambições de dominar a natureza e os processos orgânicos. No mais, é fundamental ter senso crítico para interpretar as mensagens midiáticas, questionar as cobranças para que tenhamos um corpo magro e esbelto... e pensar em valores. Muitos pensam que esculpir o corpo é rota de sucesso e felicidade, mas precisamos saber que a etiqueta da roupa e o número na balança não as coisas mais importantes da vida. Que tipo de pessoa você é? Que tipo de pessoa você quer ser? Que tipo de pessoa você quer que as pessoas enxerguem em você? O que você pensa sobre saúde física, vida profissional, relacionamentos pessoais? Quais são as suas prioridades? Para termos uma vida saudável e plena, precisamos construir um conjunto sólido de valores e agir de acordo com eles.

E como foi dito anteriormente, não se confunda: aceitar o seu corpo não significa achá-lo maravilhoso o tempo inteiro e em qualquer circunstância. Inseguranças e insatisfações fazem parte da vida. Sempre estarão presentes. Não gostar de certos aspectos não é impedimento para aceita-los.

3)Cada dia mais vemos mulheres maltratando seus corpos e sua saúde em busca de um corpo perfeito. De quem você diria que é a “culpa” por termos cada vez mais mulheres (e homens também) odiando seus corpos?

Não podemos ser maniqueístas e estabelecer uma única causa para as nossas dificuldades. A obsessão da sociedade contemporânea pelo corpo e pela imagem tem raízes culturais, históricas e sociais profundas, que nunca serão inteiramente elucidadas. Os aspectos envolvidos são numerosos demais.

Existem os contratos silenciosos que nos mostram qual é o papel que devemos cumprir e sabemos que as mulheres, desde muito novas, aprendem que o seu valor reside no aspecto físico. A menina deve ser bonita, graciosa, delicada (ao contrário dos meninos, que são encorajados a ser criativos e explorar o ambiente). Assim que sai da infância, aprende a competir com outras mulheres pela atenção masculina. Ser bonita é um fator emergencial e crítico para uma mulher – os homens conseguem “ganhar pontos” em outros aspectos como dinheiro, poder, influência ou sucesso profissional, mas para nós, a atratividade fala mais alto.

Existe também a questão do estigma em torno do corpo gordo, a lipofobia profundamente presente no nosso cotidiano. Enquanto coletividade, nós definitivamente temos um problema com a gordura. Temos pavor dessa substância nos alimentos, no nosso corpo e no corpo dos outros (os motivos para isso são intrincados e complexos) – muitas pessoas são movidas pelo objetivo de emagrecer ou de não se deixar engordar. Ser magro é imperativo porque o corpo magro é constantemente relacionado com sucesso, disciplina e autocontrole. Como consequência dessa lipofobia, as pessoas odeiam seus corpos, se punem e se reprovam por não terem um corpo ascético, “limpo”, livre da gordura. Vale tudo para não ser gordo, mesmo que os métodos empregados não sejam seguros ou saudáveis.

No mais, sabemos que o mercado aproveita tais situações para transformar a insatisfação em lucro, no entanto, é importante lembrar que se existe a prestação de serviço, é porque existe demanda. As indústrias da beleza e do emagrecimento são poderosas e vastas porque existe uma ampla receptividade dos consumidores. Hoje em dia nós estamos vivendo um período de amplo desenvolvimento tecnológico e conforto, temos soluções para muitos problemas que anteriormente nos afligiam... Mas a questão do corpo sempre será nosso calcanhar de Aquiles. Porque o corpo deteriora! É um processo orgânico que acontece além do nosso controle e que nos lembra constantemente da nossa impotência diante da vida. O corpo “perfeito” estampado nas capas das revistas é inorgânico. Ele não tem dobras, manchas, poros, pelos, cicatrizes, odores: é intacto. É imortal.

A busca pelo corpo perfeito é o mito da fonte da juventude (popular no século XVI) com nova roupagem. Não queremos apenas ser magros e bonitos. Queremos ter um corpo imune ao efeito do tempo e dos agentes agressores. Todos os nossos “defeitos” nos lembram da nossa impermanência neste mundo. Por isso o desgaste do corpo exaspera, escandaliza, desespera. É claro que nós odiamos o corpo! Ele não só é indomável, como também nos lembra constantemente disso. O corpo incomoda porque ele é indomável e insubmisso.

4) Por que é tão difícil aceitar-se na sociedade moderna?

Porque o motor propulsor da sociedade moderna é o lucro, e pessoas satisfeitas consomem pouquíssimo. O mito do autoaperfeiçoamento é pautado na insegurança e na necessidade de atingir um limiar de excelência altíssimo. A autocrítica da maioria das pessoas é imensa, e não diz respeito apenas ao corpo: precisamos ser a nossa “melhor versão” em todos os sentidos. Além disso, como foi dito anteriormente, muitos acreditam que a aversão e a autocobrança são as ferramentas que nos ajudarão a conseguir o que almejamos, por isso a ideia de aceitar as coisas como são soa como uma total “derrota”. Estar sempre inconformado com as circunstâncias da sua vida, para muitos, é uma maneira de provar ao mundo que você quer ser um ser humano melhor. É uma armadilha. Aceitar-se não é uma opção porque nos ensinaram que é a atitude dos preguiçosos. Não existe nada de errado em não ser uma pessoa extremamente ambiciosa, mas poucos têm a coragem de assumir tal atitude diante de uma sociedade tão focada no progresso e na produtividade.

Além das questões mercadológicas, existem valores sociais milenares pautados em pecado, penitência e culpa. Nós temos falsas noções de humildade e acreditamos que enaltecer nossas falhas é o que devemos fazer para não sermos arrogantes.

Aceitar-se não é impossível. Mas com toda a certeza é algo muito difícil de bancar diante de inúmeros discursos que nos dizem que nós, do jeitinho que somos, não servimos. Somos reféns de um constante trabalho de correção e melhoramento e são poucos os que ousam encarar de frente a vulnerabilidade, a limitação e a imperfeição.

5) Como a autoaceitação pode melhorar aspectos da saúde de um indivíduo?

Autoaceitação significa parar de brigar consigo mesmo. Parar de brigar significa encerrar a guerra, soltar o chicote e finalmente jogar no seu time. É encarar o corpo, a autoestima e a saúde de maneira aberta, honesta e objetiva. É fazer o melhor a partir das variáveis que temos. Modificar o que é possível (importante: se este realmente for o desejo) e conviver com o imutável. Todas as verdadeiras epifanias de transformação de vida aconteceram quando a pessoa finalmente descobriu a importância do amor próprio.

Nossas mais profundas angústias não podem ser resolvidas com modificações superficiais. Dietas, cosméticos, roupas novas, cirurgias... Nada disso tem o poder de criar um suporte interno sólido e uma autoestima genuína. Autoaceitação é a chave para vivermos de maneira lúcida: fisicamente, mentalmente, emocionalmente e psicologicamente saudável. Expectativas irrealistas e delírios de perfeição não ajudam ninguém. Muito pelo contrário: pessoas que têm uma insatisfação altíssima têm a qualidade de vida severamente comprometida. São maiores as chances de desenvolvimento e perpetuação de hábitos de vida pouco saudáveis ou até mesmo nocivos. Autoaceitação é um fator absolutamente fundamental para quem quer abraçar a nobre tarefa do autocuidado.

6) O que acontece quando começamos a nos aceitar como somos?

Tudo muda. Aceitar-nos como somos é exatamente como recuperar a saúde de um rio: remover desvios de fluxo, barreiras, permitir que tudo flua no seu próprio ritmo e que elementos poluentes acumulados ao longo de muito tempo sejam eliminados e limpos. É restaurar a ordem natural das coisas sem interferências forçadas ou violentas. É desistir de lutar contra a natureza, os processos orgânicos, as fragilidades e os defeitos. É viver e deixar viver. É encontrar a paz em meio ao caos. É o fim de frustrações e complexos de longa data.

7) Autoaceitação x Autoestima. Qual a diferença e como esses conceitos se relacionam?

Autoestima é um sentimento valorativo das nossas características físicas e de personalidade. Significa ter um conceito positivo de si mesmo. Cabe repetir que ter autoestima não significa se achar indestrutível, inabalável ou desprovido de defeitos. Ter autoestima não é a mesma coisa que adotar uma atitude histriônica. Indivíduos que têm uma autoestima saudável conhecem seus defeitos, não os negam nem bloqueiam. Aceitar todas as nossas particularidades de peito aberto é uma habilidade que tem relação direta com a construção da autoestima. Sempre é importante encontrar um equilíbrio: se achar a pior das criaturas é um padrão de pensamento bastante disfuncional, mas exibir um amor próprio desesperado e narcisista também não é uma atitude saudável. Lucidez e moderação devem prevalecer sempre.

8) A autoaceitação é a mesma coisa que conformismo ou descuido?

De maneira alguma. São coisas radicalmente diferentes. Atitudes de autoabandono normalmente fazem parte da vida de pessoas que têm a autoestima muito abalada e que têm graves problemas de autoconfiança. Nós não cuidamos nem preservamos aquilo que não nos interessa. A falta de cuidado é uma consequência de não se gostar. Pessoas que têm baixa autoestima são mais propensas a desenvolver transtornos alimentares ou adotar comportamentos de risco (abuso de álcool, atitudes imprudentes, drogas lícitas e ilícitas). Pessoas que se aceitam são mais engajadas nas tarefas de autocuidado, desde escolhas alimentares, roupas e acessórios, até higiene pessoal. Quando a insatisfação corporal é muito grande, os “projetos” de transformação são sempre agudos, radicais e duram pouco. A mudança não se sustenta porque o indivíduo acredita que só será possível se aceitar após atingir uma grande mudança (uma cirurgia plástica ou uma perda significativa de peso, por exemplo). Esta noção não poderia ser mais equivocada. Não é mudando que você irá se aceitar. É se aceitando que você irá mudar. Quem me conhece sabe que é algo que eu não canso de repetir.

9) Se você pudesse resumir a autoaceitação em 5 passos práticos. Quais seriam?

1. Tenha expectativas realistas.

2. Aceite a vulnerabilidade e a imperfeição.

3. Não confunda amor próprio com narcisismo.

4. Esqueça a aversão e aposte na amorosidade.

5. Seja compassivo com você mesmo.


 
 
 

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